segunda-feira, janeiro 31, 2005

Sangue

Como se a história fosse terminar no momento exacto, decido contar a mim mesmo a última das aventuras, começo por me olhar ao espelho e penso em mim, como pude já eu sorrir ou chorar, contemplar e ignorar certas pessoas, fechar e abrir os olhos em constante delírio?
Penso na forma mais eficaz de terminar a histórias, o conta-gotas do meu pulso ferido poderia ser uma boa maneira, o lento escorrer do sangue que se acumula num conjunto de gotas, num aglomerado de lágrimas que sou eu, que são a minha vida, o lento escorrer da vida para fora de mim, como se uma fuga à luz do dia se tratasse.
Lembro cada nome e cada personagem ao lento bater do sangue, digo os nomes todos de trás para a frente e recordo-os com saudade, a saudade de quem já esqueceu alguns momentos, mas que traz à força inconsciente das memórias que não quer lembrar, um peso que ninguém vê, um poder que ninguém sente, um sonho que ninguém se atreve a sonhar, os pesadelos de vos lembrar a todos com a nítida noção de me apetecer fugir daqui...
Feridas abertas no pulso que trazem de volta as feridas abertas dentro da minha cabeça, fragmentos de corações e olhares que nunca mais voltam a juntar-se, promessas e juras que nunca se cumprem, sabores e cheiros que voltam ao ambiente sem que eu peça ou queira, a força de abraços e corpos unidos, o pulso aberto, a alma aberta a si mesma, lágrimas que se choram a si mesmas com vontade de perguntar "porquê?".
Lentamente e gota após gota sinto a força abandonar as minhas pernas, baixo-me e tento não parecer demasiado penitente quando encontrar a minha própria terminologia, passo as mãos pelos cabelos e lavo-os de sangue, sou eu todo por fora como era por dentro, sou a mistura de hemoglobina e plasma, sou o fantasma do líquido da vida, sou 180º graus menos eu e sou uma volta completa a mim mesmo, uma volta que acaba no mesmo sítio quer eu seja diferente ou seja exactamente igual, sou vermelho e acabo por ser branco de vazio, de ausência total e abertura a ser qualquer coisa menos isto...menos o nada que acaba e começa sempre no branco.
Sou também o ruído lento e baixo da minha própria dor que se consome a si mesma e me deixa cada vez mais tonto, sou a tortura implícita e inadmíssivel do meu próprio ser que se deixa consumir em fogos que não ardem e não estalam quando me comem a carne, sou o branco, a ausência de existência, sou o consumir de branco pelo fogo...sou futuro negro e cinza que voa ao vento, sem destino ou qualquer relevância.
Nessa mistura de barulho, os olhos fecham e abrem com o som de fundo das gotas de sangue, uma última vez tento perceber onde é que errei e onde é que fiz tudo bem, pergunto a mim mesmo se estou contente comigo mesmo, se deixei alguém feliz nesta vida, se mostrei a felicidade e se fiz alguém acreditar no mundo, acredito que sim e as lágrimas escorrem-me com saudade de te fazer feliz, de te deixar a sorrir...ao contrário eu choro, as lágrimas queimam-me as feridas e o seu sal é como o último castigo, como o último grito antes de morrer, o respirar fundo antes de mergulhar...
Sou branco, sou hemoglobina e plasma, sou nada, sou uma mistura de tanto que se funde e perde em si mesma...finalmente caio e tombo no chão.
Coberto de vermelho, deixo sair a vida por um pulso, o mesmo que escreveu a última aventura do meu ser, tudo tinha de terminar por aí...sou branco, mas deixo o nome escrito a vermelho, de vida e de morte....sou branco escrito a vermelho, sou futuro cinza e negro, sou alma ao vento, buraco de existência e ausência de dor...
Sou sangue no chão...era eu.

domingo, janeiro 30, 2005

És Minha

Olho para a folha branca desejando poder descobrir dentro de mim todas as palavras que possam dizer o que sinto, o que penso, o que quero. Todos os sentimentos e emoções que não consigo organizar em pensamento, mas que conheço intrinsecamente em sensações. Pequenas reacções químicas cujo significado o meu cérebro rejeita, mas que o meu subconsciente devora... Estas reacções químicas escondem-se dentro de mim, preenchendo-me e sussurrando-me ao ouvido as minhas verdades que eu não quero ouvir, toda a verdade que eu desejo esquecer, todas as razões que me recuso a ver, todo o Mundo que me come e devora, mastigando-me e saboreando-me lentamente, testando assim os meus limites... As minhas forças, os pontos fracos, os meus altos, os meus baixos, eu...
Quero agarrar neste Mundo e devorá-lo. Quero espetar-lhe as unhas pela carne e arrancar-lhe a traqueia, quero sentar-me em cima dele como uma amante e partir-lhe as omoplatas, quero esventrar este Mundo e regalar-me com as suas vísceras, quero desmembrar este Mundo e espalhar os seus membros pelo Mundo real, quero gritar-lhe aos ouvidos até sentir o toque fino e agudo da surdez, clamando a minha independência, implorando-lhe que me liberte, implorando-lhe que nunca me abandone, implorando-lhe mais paciência, mais capacidade, mais talento, mais inteligência, mais amor, mais tudo e nada... Implorando-lhe que seja eu, implorando-lhe que me deixe ser aquilo que sou... Implorando a berrando e lutando comigo própria por mim. Pego na faca e penso o quanto fácil não seria acabar com aquele pulsar de vida rapidamente e no prazer que me daria o sangue a escorrer-me pela carne... O orgasmo que provocaria a dor duma facada.. Sangue, morte... Dor... Apetece-me morder a língua do meu Mundo, durante um beijo desesperado, para sentir o sabor férreo do sangue na minha boca, para sugar a essência vital daquela outra eu e para a fundir a mim. Apetece-me agarrar naquela outra que sou eu, levá-la para a cama e fornicá-la violentamente, para mostrar que sou eu que a possuo e não ela que me possui a mim.
"Ama-me!" quero gritar-lhe aos ouvidos... Apetece-me bater-lhe, apetece-me descarregar em cima dela toda a raiva acumulada durante anos, todo o embaraço provocado pela vergonha, todas as vezes em que ela me deixou mal, todas as vezes em que ela me abandonou, todas as vezes em que ela esteve comigo!
Todo o turbilhão de emoções que é tudo e não é nada, numa sucessiva combinações de sentimentos emaranhados e confusos, claros e precisos, tudo e nada, nada e tudo.. Ama-me Foda-se! Tu que sabes tudo, tu a quem nada posso esconder... Caralho amo-te e odeio-te tão intensamente... Não tens o direito de me preencher assim.
No fim retiro a folha do papel e olho fixamente em frente, enquanto roo o lápiz sensualmente... "Não podemos fugir daquilo que somos". E sinto o sabor do sangue na boca... Acabei de trincar a língua.
Triunfalmente sugo a minha essência vital e sussurro... "Agora és minha."

quarta-feira, janeiro 26, 2005

Unknown Colour

O Mundo pára naquele instante fugaz entre a cor do teu olhar indefinido e tempo que os teus lábios demoram a roubar um beijo aos meus. Durante esse instante vejo o brilho dos teus olhos, sinto o bater do teu coração e debato-me com o desespero dos teus lábios. Mordes-me a língua e riste. Eu também me rio e começo a fugir aos teus beijos. Mordes-me os lábios, o pescoço e agarras-me desesperado pelo beijo que eu a rir te nego. Apanhas-me os lábios, mas eu com os dentes cerrados impeço-te de me beijares. Olho arrebatadoramente para ti e sorrio. No meu sorriso há uma promessa e nos meus olhos uma provocação. O teu sorriso abre-se com o meu e os teus olhos fixam os meus... Leio ternura e cumplicidade no teu olhar... Perco-me em ti... Descubro que não sei a cor dos teus olhos... Dourados? Verdes? Azuis? Claros... Ainda estou a tentar decifrar o padrão dos teus olhos... a cor que os define quando me voltas a beijar. Volto a olhar-te e fico com a certeza de que são dourados. Beijas-me outra vez e quando olho outra vez já são azuis... Beijo-te e quando volto a olhar vejo verde. De que cor são, afinal? Qual é a cor dos teus olhos, que eu desconheço? Porque muda a cada beijo? Extasiada persigo a cor, desesperada por mergulhar dentro dela e por me afogar na paz apimentada que me ofereces... E extasiada continuo a perseguir a cor dos teus olhos que não consigo definir arrebatada pelo mistério que me ofereces a cada novo beijo...
E, assim, fico.... Fico contigo.

terça-feira, janeiro 25, 2005

O teu quarto

Acaba de te vestir, estás por aí a demorar tanto tempo e nunca mais conseguimos sair, nunca mais páras de dançar à minha volta e eu não sei quanto mais tempo resisto. Olho para todas as coisas à tua volta, os relógios, os brincos, a tua roupa interior...tudo espalhado por todo o lado no teu quarto e como eu adoro aquela desarrumação, aquela falta de sentido prático e vontade de criar o caos, como é giro o teu quarto e todo ele é um reflexo de ti, memórias guardadas em cada bocadinho, iluminado quanto baste mas ainda assim misterioso. A primeira vez que lá entrei foi como se estivesse a penetrar um templo sagrado, não sei se te lembras da primeira coisa que fiz, deitei-me no chão e fiquei ali a olhar, simplesmente parei e lembro-me que te sentaste em cima de mim a perguntar-me o que estava a fazer...nem eu percebi na altura o que estava a fazer, era algo diferente dos outros quartos, era teu e como eu adorava poder descobrir as tuas coisas, fotografar na memória e levar bocadinhos comigo...lentamente e provavelmente, sem que tu tivesses noção, dei uma volta ao quarto com os meus olhos...
Ali estavas tu em todos os lados, perdida em coisas que eu nem sabia o que significavam...lembro-me de estar agarrado a ti e a dançar, como se eu dançasse assim tanto ou alguma coisa que valesse a pena chamá-la de dança, cantava uma música que dizia algo como "...here today..." e só aquela voz e aquela letra naquele momento faziam sentido.
Sei como se tivesse sido hoje, qual era a roupa que tinhas, a maneira como olhaste para mim e a forma como cá dentro, me parti em mil bocados e fui colado de novo, instântaneo como um mili-segundo que vai e vem...cá dentro pensava...e depois decidi não pensar mais, deixei-me levar e assim fui...

Por favor...veste-te depressa, espero por ti lá fora.

domingo, janeiro 23, 2005

Nas Trevas/Sem Luz

Como há algum tempo não se via, Chilita e Gonçalo, juntos de novo num texto, algo negro... Esperamos que gostem!


Detesto a tua forma de passar ao lado da vida, a maneira como ela te parece tão improvável em termos de felicidade, a maneira como pintas tudo de preto, cobrindo mesmo o próprio Sol com um manto...de forma a que ele não brilhe sobre ninguém, nem sobre quem o quer mais. Caminhas num passeio em que a continuar dessa forma, os buracos vão continuar a aparecer, a ser cada vez maiores e as desgraças cada vez menos, porque cada vez mais vais parar, encostar a uma parede e ficar por ali à espera que o tempo passe lentamente, sem pensar se está muito frio ou quente aquele dia em particular, os outros dias todos que podem vir a acontecer. Não tens medo do frio à noite nem do calor durante o dia, o teu coração é uma máquina auto-suficiente que queima o suficiente para a tua subsistência enquanto Ser, não vive nem sente, carbura sentimentos como um pequeno fósforo se consome rapidamente com o lento desaparecer do oxigénio, ele consome, torce e mutila, é uma máquina de guerra perfeita.
É nessa estrada em que caminham os perdidos, os atirados ao chão pela vida que não se querem levantar, os que baixaram os braços e preferem levar todos os dias com o lento correr das horas, não pensar e não sofrer, deixar o Sol nascer, contemplar o seu auge e esperar que ele desça, sem sequer por uma vez arriscar uma saída à chuva, para lavar a alma de tudo o que a conspurca. É nessa estrada onde já ninguém consegue levantar os olhos e olhar os outros de frente que tu caminhas, aos tropeções nas próprias pedras que por ali estão...dás-lhes pontapés, como as crianças fazem, eventualmente magoas um pé e choras...como uma criança que além de estar magoada está agora a perceber que não é com pontapés que se vai sentir melhor, não é com a raiva que vai construir...só destruir.
E destruindo avanças o teu caminho como uma máquina de destruição maciça. Olho para ti e vejo uma personagem de cinema; dura, fria, impiedosa, implacável, que nada vê e nada sente. Segues o teu caminho dormente, ausente e indiferente, deixando um rasto de buraco negro atrás de ti, que teima em sugar a luz do Sol… um rasto de podridão que teima em sugar o apogeu do Sol, para afogar aquela luz ofuscante nas tuas trevas. Como uma profetisa da desgraça avanças o teu caminho cheio de pedras, solidão e amargura… Encostas-te à vida e segues a manada, insultando quem te fez nascer com a tua recusa em tomares parte neste mundo… encostas-te à vida e tornas-te num fantasma ensombrado que a persegue e vaia, quando o que mais desejas é fundires-te com ela… No entanto, continuas no teu estado de recusa dormente, recusando-te a aceitares a vida que é parte de ti, enquanto te consomes em trevas e solidão… dentro do teu buraco negro. Não olhas em frente, porque tens medo de ver nos olhos dos outros “zombies” e robots como tu, o reflexo de quem és. Não olhas em frente porque temes o derradeiro momento em que irás desejar agarrar a vida… Nesse momento vais esticar a mão para lhe implorares tréguas e paz na tua guerra pessoal e aí vais descobrir que a luz que sempre te perseguiu, apesar de tu a desdenhares, simplesmente partiu e não existe mais… Com a sua partida, partes tu também, embalada nos braços da morte, chorando como uma menina nos braços do amante que nunca desejou verdadeiramente e que só se apercebeu disso quando se viu condenada a ficar com ele eternamente… Como uma amante amargurada vais abrir os olhos e descobrir que foste sugada para dentro de ti mesma e que não encontras nada mais excepto trevas… e morte.

sábado, janeiro 22, 2005

Vapores

Pediste-me um vapor de alegria, dizendo que do teu lado não havia névoa ou fumo de alegria onde te pudesses perder, naquela bruma onde todos se guiam às cegas, ainda que saibam bem para onde vão...
Tentei e podia tentar escrever mil textos que nada diriam senão o mesmo que todos dizem, as mesmas necessidades e os mesmos desejos, os sonhos que se podem formular enquanto se dorme, os sonhos que se dão com os passos do dia-a-dia quando vamos sozinhos na rua e pensamos em alguém, as tristezas que podem estar sempre inerentes ao facto de descobrir o amor e o ódio, a força de uma paixão que pode de forma rápida inverter, tornar os sonhos em pesadelos, os sorrisos em semblantes de loucura, da sensação de perda que é irreparável...do que fica e do que se vai, de lidar com o que há e saber dar valor a tudo isso, dos momentos que passam e gostam de voltar à nossa cabeça quando menos necessitamos deles, dos olhares perdidos um no outro que sabem falar sozinhos quando a boca, essa não pode falar porque não há nada a dizer...
Podia falar-te de como consegue ser triste mas isso tu já sabes, aliás todos sabemos como é estar lá em baixo e não ter vontade nenhuma de fazer seja o que for, acreditar e pensar que um dia vem alguma coisa, há-de vir mais do que tristeza e memórias que nos matam, que nos sufocam como os abraços e os beijos sufocavam de prazer, podia dizer que não há nada como dois corpos um contra o outro, não há nada como adormecer nos braços de alguém de quem se gosta, de fechar os olhos e esquecer todo o mundo à volta, não há nada...pode não haver nada, mas por certo algum dia, os tesouros descobrem-se, sem mapas a indicar o caminho e sem vontade de enriquecer só por proveito próprio...mas para guardar o tesouro que se tem.
Podia ter dito tanta coisa, feito os maiores castelos nas nuvens que alguma vez terias visto, daqueles que existem só em sonhos, com histórias perfeitas e finais felizes...mas não fiz isso, só me limitei a constatar o que tu fazes, o que em si é simples e eu tentei manter isso simples.
Simplifiquei...só na tentativa de te fazer sorrir.
Consegui?

terça-feira, janeiro 18, 2005

Sombra

Quem és tu? Eu não sei bem, digamos que ainda és só uma imagem formada dentro da minha cabeça, criada a partir de sonhos que vieram ao longo dos anos, das noites passadas a pedir só mais alguém, mas desta vez só mais alguém como essa sombra, mas nunca veio ninguém... Essa imagem que eu fui desenhando parece que nunca mais está pronta, parece que nunca mais vens bater-me à porta com um sorriso a pedir-me para passear, a dizer que hoje é dia de sorrir e nisto estendes a tua mão para a minha, eu estendo a minha para a tua e vamos por aí, sem destino mas com o rumo da felicidade.
Ainda que sendo uma sombra, quando te sigo à noite pela praia a ouvir o som do mar, não te vendo, vejo os teus passos na areia, convictos e firmes, penso para mim mesmo que sou capaz de te seguir até ao fim do mundo, se for necessário seguir os teus passos, para te procurar e nesse momento, agarrar-te e nunca mais largar. Mas és só uma sombra que eu posso imaginar que terá uma forma mais real, um sorriso para onde eu possa olhar quando me sentir triste e perder toda a tristeza, uma sombra que saberá sempre o que dizer quando eu tiver que ouvir aquilo, só mesmo aquilo e mais nada. Uma sombra para eu guardar no meu lugar ao sol, onde nem a chuva ou as tempestades se atreveriam a entrar, tal seria o brilho do sol e a sua luz, sobre a tua figura quieta, parada a olhar o horizonte e nesse silêncio, saberias sorrir à vida.
Não venhas depressa nem devagar, vem aos teus passos, vem ao teu ritmo e vem como o coração te mandar, mas quando aqui passares à frente, sorri e não duvides nesse momento, que atrás de ti mais dois pés se juntarão, seja lá para onde for que nós vamos...com rumo a um horizonte de felicidade sem pensar como se vai lá chegar.
Mas vem...

domingo, janeiro 16, 2005

Um pequeno homem

Quando a planície se recortava atrás de si, com aquele sol a nascer lá ao fundo, os dias pareciam começar com um sentido diferente, quando caminhava à sua procura e todos os dias encontrava nada. Partiu numa busca diferente, queria ser feliz e poder um dia olhar para trás dizendo que tinha sido uma busca incessante como quem procura o sentido da vida, tinha-a procurado em todos os cantos do mundo, tinha visto mil e uma coisas...mas nada lhe fazia sentido. Como alguém tinha dito um dia, "saberás tu o que é amar alguém, mais do que te amas a ti mesmo?", não sabia, não imaginava, gostava apenas de saber e julgar que alguém um dia, lhe poderia dizer isso como quem diz um simples olá, que alguém sentisse esse aperto no coração de ter a incrível necessidade de mandar tudo cá para fora, encher o mundo de coisas doces, colorir as pinturas mais tristes, inverter o significado de tristeza, fazer alguém feliz, fazer alguém sentir-se importante...e ser assim sentido também. Procurar refúgio no abraço de alguém, poder procurar esse refúgio sem receio de um dia o perder como se perde a chuva quando o sol bate nos olhos, os campos secam e os telhados pingam...como o amor pinga de um coração ferido, expulsa sangue e chora as lágrimas que só ali pode chorar. Esperava quase impacientemente por um anjo que nunca mais vinha, porque o céu insistia em ser negro quando tocava a esperar que caíssem anjos, mas a busca não iria parar, a necessidade de ser feliz e de fazer alguém feliz não podia depender de tristezas que nos amarram, a procura tinha de ser até ao dia em que morresse e suspirasse pela última vez, sozinho ou acompanhado...teria de saber dizer nessa altura que tinha sido feliz, nem que fosse naqueles pequenos momentos já quase apagados da sua memória. Teria de ser mais forte que a própria vida, lutar contra obstáculos que não via, cair e saber levantar-se de cada vez que a vida o mandasse ao chão, ao mesmo tempo que gritava para si mesmo que não era agora que ia desistir, que não havia força maior que a sua determinação, que podiam dizer o que quisessem, mas as mágoas só nos tornam mais fortes e não precisamos de nos esconder ou ter medo do mundo que está aí fora para nos magoar, teríamos era cada vez mais de lutar com mais força, passar para lá dos limites do aceitável em termos de loucura, saber amar, suspirar por um suspiro, morrer a cada beijo que se dá, deixar um pouco de alma em cada mistura de almas que se faz...e talvez levar para a eternidade o sabor e o cheiro de cada amor que se tem.
Ao som dos pássaros que viviam felizes na planície, apeteceu ao pequeno homem fechar os olhos e chorar durante um bom bocado, pedir à vida mais sorte e talvez alguém para tomar conta dele, mas qual era o sentido de pedir quando estava completamente só naquele turbilhão? Se aquela maré arrastava dores e paixões que arrebatavam toda a sua maneira de ser, se os sinais lhe diziam para ser outro, para não pensar como quem acredita em finais felizes, se era pedir muito ter alguém com quem partilhar a vida?
A resposta é que nunca veio, mas o pequeno homem, caminhou e eventualmente um dia caiu morto de tanto lutar...só nunca se soube se da última vez que olhou o mundo e avaliou a vida, conseguiu sorrir à morte dizendo que tinha sido alguém realmente feliz...

sábado, janeiro 08, 2005

Trovão

Um trovão que soa ao longe, na distância que se ergue, onde eu não vejo a luz e só ouço o murmurar já longínquo de uma voz tenebrosa. Calado tento pensar numa forma nova de abrir os olhos, que por agora estão cosidos à força de não conseguir encarar os dias com os olhos de frente, com coragem...como uma companhia de cavalaria a galopar ruidosamente colina abaixo, atacando e carregando. Dedico o corpo à explosão do trovão, ao estalar das fendas mais profundas da terra, que elas engulam sem pena ou qualquer tipo de clemência...o meu corpo que quer voar, que quis voar e foi obrigado a viver no chão, longe das nuvens. Grito e volto a gritar pelo castigo que me espera, estou farto de levar empurrões e de cair constantemente, levem-me de uma vez para o purgatório, onde a alma irá arder eternamente sem qualquer tipo de misericórdia. Nesse sítio onde posso chorar e as lágrimas de fogo a cair, queimarão de forma impiedosa o meu corpo já cansado de ser inútil, de ser a estrutura que suporta a alma escura...
No campo aberto onde a chuva cai incessantemente, que vai molhando o meu corpo até aos ossos, eu abro os braços ao mundo e fico em silêncio à espera da resposta ruídosa,sou uma vez mais a pergunta que não tem resposta... De pés descalços contra a relva, corro uma última vez pelo espaço aberto, de braços abertos e olhos fechados a sentir o vento bater-me na cara, viver a vida e experienciá-la sem limites até ao seu máximo, amar sem conhecer limites e correr tal e qual, de braços abertos e se for necessário de olhos fechados, para a felicidade que aguarda nos passos seguintes.
Por fim sou parte da paisagem, sou apenas eu e nada me destaca quando eu páro e o vento não sopra mais na minha cara.
Abro os olhos e peço perdão uma vez, por todos os erros que cometi na vida...
Abro os braços e espero a explosão.
...barulho, vem aí e eu talvez tenha medo de partir, cravo as unhas na pele, choro, sal...água...sem destino...a descer, a cair, a molhar-me a boca...
O céu ilumina-se, rasga-se em luz e num milésimo de segundo...quase juro que consigo ver o lento andar de um relâmpago para mim, como uma mão divina que me puxa e me quer levar. Baixo a cabeça...aquilo era eu. Sou partícula ou pó, sou isto e aquilo, sou uma alma que só queria voar e sonhar.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

Momento

Num momento tudo mudou. Sim... Um momento. Tu para mim és um conjunto de momentos aos quais eu me prendi e dos quais a seguir me limitei a fugir... A fugir para longe, como sempre. A partir na escuridão sem olhar para trás. Mas ainda saboreio nos meus lábios o momento em que demos aquele primeiro beijo empolgado e com um toque de desespero... Nesse momento matás-te-me e fizeste-me viver outra vez... Diferente. Soube enquanto me abraçavas e me despedia de ti que algo tinha mudado e que tu tinhas apenas sido o início da verdadeira grande mudança. Soube também que eras apenas especial para mim ali e naquele momento e que não o irias continuar a ser no meu futuro. Não... Tu limitaste-te a chegar como um anjo resgatador, tirando-me dum poço fundo e escuro, e fazendo-me renascer com um beijo, para desapareceres da minha vida e do meu coração a seguir. Nunca fomos feitos para sermos juntos ou para nos pertencermos um ao outro... E enquanto desaparecias do meu coração eu apenas via o futuro à frente e não eras tu quem lá estava. Tu apenas, com o teu resgate, me deste uma visão embaciada desse futuro e me fizeste acreditar outra vez em mim e desacreditar nos meus erros.
Quando no teu silêncio ouvi a minha verdade e quando na tua verdade ouvi o meu silêncio, soube sem mágoa nem dor, aquilo que o coração já tinha sentido, que o teu papel na história da minha vida estava terminado e que te deixava diferente e visionária.
O que tivemos acabou e trouxe consigo o receio pela dor... O receio pelo verdadeiro sentimento. Pelo inexorável, empolgante, desejável e invitável sentimento. Veio também o desejo que se retarde... O desejo de não sofrer, o desejo de não sentir e o inevitável verdadeiro desejo de ser... De sentir. De deixar acontecer. De se limitar a ser. O desejo do sentimento puro que aterroriza o mais corajoso dos corações e preenche o vazio como uma chama sagrada e purificadora que tudo consome e inflama, para depois renascer das cinzas como uma fénix e incendiar como um fogo eterno que tudo abrange e que nunca mais se olvidará.... para sempre. Mais tarde ou mais cedo o inevitável acontece... A verdade ou o inevitável acontece não como um momento, mesmo que o seja, mas como uma eternidade dentro do presente e foi no momento em que te beijei que me limitei a saber que a verdade era simplesmente muito muito muito mais do que aquele presente... com sabor a momento.

domingo, janeiro 02, 2005

Tanto Tempo

O tempo eventualmente há-de cessar, todas as coisas viradas ao contrário no seu sentido lógico e nós aqui, os mares violentamente a subir os rios, enchendo os leitos e percorrendo o caminho de volta à infância...Tal como tu e eu, cada um do seu lado da estrada, aquela que às vezes está tão vazia e desprovida barulho, quando de repente se enche e eu tento ver-te do outro lado, com aquele teu sorriso simples a acenar-me com uma mão e na outra um gelado...qualquer um. Caminhamos lado a lado para um sítio qualquer e tu vais gritando que me adoras, eu vou sorrindo deste lado e a certa altura, perco-te no meio da multidão que te envolve, quase que só vejo o teu braço a dizer-me adeus e despeço-me de ti olhando o teu braço, aconchego as lágrimas junto ao coração para que se aqueçam com o sentimento que daí transborda.
Há-de haver um dia que eu sei que não te vou ver naquela estrada, em que tu não vais mais aparecer com o teu ar de menina e eu hei-de perceber nesse momento, que tu também eras influenciada pelo tempo, que provavelmente o teu mar correu noutra direcção, de volta às origens sem que eu pudesse pelo menos saltar, tentar impedir-te de caminhares noutra direcção...Ficarei sempre à espera naquela estrada, que um dia no meio dos carros a buzinar, das pessoas irritadas e dos corpos que passam e não ficam, eu consiga ver as tuas mãos a dizer-me olá e segurando um gelado derretido, com a tua cara triste e dizendo:"porque demoraste tanto tempo?"...